1. Introdução
Recentes notícias veiculadas pela imprensa especializada destacaram o advento da Lei Municipal 18.299/2025, de São Paulo/SP, que pretende instituir a aplicação de sanções às operadoras de telecomunicações por cabos soltos, inutilizados ou em desuso nos postes de energia elétrica.
A iniciativa, embora revestida do manto da proteção da ordem urbanística e da segurança pública, suscita graves questionamentos jurídicos, sobretudo quanto à sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988 e com o marco regulatório das telecomunicações.
A medida municipal, que já está em vigor, demanda análise criteriosa, uma vez que, a promessa de fixar penalidades mais gravosas para combate à cabos soltos ou irregulares esbarra em pilares constitucionais do Pacto Federativo, avocando atribuições privativas da União, seja na modalidade direta ou indireta.
Em conclusão preliminar, constata-se a impossibilidade de subsistência das sanções previstas, diante dos vícios materiais da Lei, notadamente, a sua inconstitucionalidade e a incompetência do Município para fiscalizar e administrar o setor de telecomunicações.
2. Do Conteúdo da Lei Municipal 18.299/2025
A Lei Municipal 18.299/2025 altera diversas normas da cidade de São Paulo, que versam desde o tratamento de limpeza urbana, diretrizes para utilização de vias públicas[1], até a Lei nº 17.501, de 3 de novembro de 2020, que “dispõe sobre a observância de normas técnicas para o uso do espaço público pelas concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica e demais empresas que compartilhem sua infraestrutura e sobre a retirada de fios inutilizados em vias públicas do Município de São Paulo (…)”.
O art. 2º §2º da propositura original foi vetado pelo Prefeito Ricardo Nunes, sob a fundamentação de que haveria redundância na previsão, “na medida em que a própria lei já disciplina de forma suficiente a obrigação de regularização dos cabos e equipamentos pelas empresas que utilizam a infraestrutura, conforme dispõe o art. 4º, bem como estabelece penalidades rigorosas pelo descumprimento nos termos do art. 6º.”.
O texto consolidado[2] da Lei repisou detalhes acerca de preceitos urbanísticos do município, mas, no que nos concerne, fixou determinações e penalidades arbitrárias quanto a infraestrutura de telecomunicações da cidade.
Em primeiro ponto, a Lei alterou o art. 16 da Lei nº 16.673/17, incluindo neste a penalidade de R$ 50.000,00 a concessionárias, permissionárias e autorizadas de serviços públicos, que estiverem em desacordo com os requisitos de travessia estabelecidos no art. 3º da norma.
Em segundo ponto, sobreveio a alteração da Lei nº 17.501/2020, que trata especificamente sobre infraestrutura de telecomunicações, tendo sido criada uma previsão de multa diária de R$ 50.000,00 às prestadoras.
A Lei nº 17.501/2020, em seu art. 2º, já previa a obrigação da distribuidora de promover a retirada de fios inutilizados. A nova lei paulista, contudo, alterou esse dispositivo ao incluir o §1º, ampliando o conceito de fios inutilizados para abranger também “sobras ou segmentos de fios sem utilização mantidos soltos, enrolados, enfeixados ou presos junto a postes ou equipamentos”.
Ato seguinte, a nova norma paulista fez diversas alterações na Lei 17.501/2020, que avocam atribuições de poder de polícia fiscalizatório e sancionatório de exclusiva competência da União. Vejamos organograma das alterações:
Nova Disposição dada pela Lei 18.299/2025 | Consequência e Vício Material |
“Art. 4º A distribuidora e demais empresas que se utilizem dos postes de energia elétrica, após devidamente notificadas, deverão regularizar a situação de seus cabos e/ou equipamentos existentes, nos prazos e nos termos estabelecidos em decreto regulamentar.” (NR) | Prevê a obrigação de fiscalização, exercício de poder de polícia inexistente aos municípios, vez que, conforme será demonstrado, a fiscalização compete exclusivamente à união, por meio da Anatel, assim como das próprias concessionárias de energia elétrica. |
“Art. 6º O não cumprimento do disposto nesta Lei sujeitará o infrator à penalidade de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por dia, por face de quadra, aplicada diariamente até a cessação da irregularidade. § 3º Para fins de cálculo da multa prevista neste artigo, considera-se face de quadra o intervalo entre duas esquinas voltadas para a mesma via ou logradouro público. § 4º Postes instalados em esquinas serão considerados duas faces de quadra. § 5º O pagamento da multa eventualmente aplicada não desobriga o infrator de sanar as irregularidades existentes.” (NR) | Fixa a aplicação de multa diária no valor de R$ 50.000,00, com supedâneo em legislação inconstitucional, eis que não há ao município a atribuição de poder sancionatório decorrente da fiscalização do setor de telecomunicações. Além da inconstitucionalidade da norma, a fixação de multa diária e o seu valor avocam questionamentos acerca do nítido descumprimento dos preceitos de proporcionalidade e razoabilidade, assim como a inobservância de parâmetros e limites legais previstos. Fixa a obrigação de regularização, que mais uma vez, não lhe compete. |
“Art. 6º-A O Município poderá efetuar a contratação, ante inércia do responsável e a seu exclusivo critério, de serviço especializado para substituição ou realocação de postes e/ou remoção de fios, cabos e/ou equipamentos em desconformidade ao estabelecido nesta Lei. Parágrafo único. Os valores despendidos poderão ser cobrados do responsável omisso, devidamente acrescidos de juros e correção monetária, a fim de ressarcir os cofres municipais.” (NR) | Prevê a possibilidade de intervenção direta na rede elétrica e de telecomunicações, sem autorização dos entes proprietários. Toma para si a função de regularização, em flagrante inconstitucionalidade, além da ofensa direita ao direito de propriedade e livre gestão de ativos das prestadoras. Risco iminente de danos irreparáveis à rede e a população em caso de interrupção da prestação de serviços essenciais. |
Em mesmo teor, as alterações realizadas na Lei nº 13.614, incluem o estabelecimento de procedimentos fiscalizatórios, cuja disposição do art. 31 pode vir a afetar as prestadoras de telecomunicações, com a penalidade de “multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por metro de rede linear, multiplicado pela quantidade de cabos, ou por serviço executado sem prévio alvará de instalação ou de manutenção.”
Em síntese, a Lei Municipal nº 18.299/2025 revela inequívoca extrapolação dos limites da competência normativa do ente local, ao pretender instituir um regime paralelo de fiscalização, sanção e intervenção direta sobre a infraestrutura de telecomunicações.
Como será demonstrado, os municípios padecem de competência para legislar, sancionar ou fiscalizar sobre o setor de telecomunicações, atividades oriundas de poder de polícia fiscalizador e sancionatório pertinente à União. Legislações como esta já foram amplamente rechaçadas pelos Tribunais em razão da invasão de competência.
Exemplificativamente, destaca-se o caso do Município de Suzano/SP, que editou a Lei Complementar nº 360/2021 e o Decreto nº 9.783/2022, normas flagrantemente inconstitucionais que resultaram na paralisação de atividades de diversas empresas de telecomunicações. Sob tais diplomas, agentes municipais chegaram a apreender equipamentos e veículos, exigindo autorização prévia da Prefeitura para instalação de infraestrutura em postes já aprovados pela concessionária de energia elétrica. Criou-se, assim, uma burocracia paralela e incompatível com a competência exclusiva da União e da Anatel.
A respectiva Lei, em atuação estratégica realizada pelo escritório Silva Vitor Faria & Ribeiro teve sua inconstitucionalidade declarada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo reconhecido que as “Normas municipais que regulamentam telecomunicações são inconstitucionais por invadirem competência privativa da União.” e por conseguinte determinado a anulação dos atos administrativos praticados pelo município.
As previsões supratranscritas revelam clara a inconstitucionalidade formal e material da Lei Municipal nº 18.299/2025, cuja aplicação, resultará não apenas em insegurança jurídica, mas em severos riscos à estabilidade regulatória e à universalização do acesso aos serviços de telecomunicações.
3. Da Competência Privativa da União Para Legislar e Fiscalizar o Setor de Telecomunicações
Sob a ótica dos requisitos materiais de validade da legislação, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) atribui às telecomunicações competência privativa da União, cabendo-lhe não apenas legislar sobre a matéria, mas também explorar diretamente indiretamente tais serviços. É o que dispõem o art. 21, inciso XI, e o art. 22, inciso IV, da CF/88:
“Art. 21. Compete à União: (…) XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;”
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) IV – águas, energia, informática,
telecomunicações e radiodifusão;” (g.n.)
Em decorrência dessa repartição constitucional de competências, incumbe exclusivamente à União, por meio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a atribuição de regular, fiscalizar e, quando necessário, sancionar no setor, no exercício de seu poder de polícia. Esse desenho federativo foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal em diversos precedentes, os quais consignam expressamente que:
i) O fato gerador vinculado à fiscalização da atividade-fim de telecomunicações, incluindo a instalação, uso e funcionamento de redes, torres, cabos e demais equipamentos pertence exclusivamente ao ente federal.
ii) Leis municipais ou estaduais que tentem instituir ou replicar tal exação usurpam competência constitucional, configurando vício de iniciativa insanável.
iii) Eventual alegação de interesse local ou de disciplina urbanística não autoriza a criação de taxa ou sanções que recaiam sobre o núcleo da atividade de Telecom, sob pena de ofensa ao pacto federativo.
Sobreleva consignar que a organização e fiscalização dos serviços de telecomunicações é de competência única e exclusiva da União, como fundamentado acima. Todavia, através de uma política de descentralização, a União transferiu o poder de regulamentar e fiscalizar à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, conforme se verifica da Lei nº 9.472/97 (LGT), in verbis:
“Art. 1° Compete à União, por intermédio do órgão regulador e nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, organizar a exploração dos serviços de telecomunicações. Parágrafo único. A organização inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e espectro de radiofrequências. (…)
Art. 8° Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal, podendo estabelecer unidades regionais. (…)” (g.n.)
E com fulcro na Lei Geral de Telecomunicações, restou estabelecido em seu art. 19 as prerrogativas da ANATEL, dentre elas a fiscalização, administração, controle, e aplicação de sanção pertinente ao setor de telecomunicações.
Para além da atuação direta da União na fiscalização por meio da ANATEL, o exercício desta competência também se verifica na modalidade indireta, em razão da atribuição dada às concessionárias de energia elétrica para fiscalizar a infraestrutura de suporte (postes) e suas ocupações. As Resoluções Conjuntas 001/99, 004/2014, e a Resolução 1.044/2022 repisam este dever, que também pode ser observado na Lei de Antenas:
Lei nº 13.116/2015 – Lei de Antenas:
“Art. 11. Sem prejuízo de eventual direito de regresso, a responsabilidade pela conformidade técnica da infraestrutura de redes de telecomunicações será da detentora daquela infraestrutura.”
Da análise empreendida, verifica-se que a Lei Municipal nº 18.299/2025, ainda que busque legitimar-se sob o manto da proteção urbanística e da segurança pública, ultrapassa de forma evidente os limites constitucionais do pacto federativo, ao invadir matéria de competência privativa da União. A fiscalização, regulamentação e eventual sanção no setor de telecomunicações são atribuições exclusivas da União, exercidas por intermédio da ANATEL, de modo que a ingerência normativa e punitiva do Município de São Paulo revela-se flagrantemente inconstitucional.
Além disso, a própria legislação e regulamentação federal já disciplinam com rigor as responsabilidades das concessionárias de energia elétrica e das prestadoras de telecomunicações, atribuindo-lhes deveres específicos de manutenção, retirada de cabos inutilizados e observância de normas técnicas. A sobreposição de competências municipais, portanto, não apenas viola a repartição constitucional de competências, mas gera insegurança jurídica e ameaça ao equilíbrio econômico-regulatório do setor.
Em última análise, a iniciativa municipal configura mais um exemplo de excesso legislativo que, a pretexto de tutelar o espaço urbano, compromete a uniformidade normativa, cria ônus indevidos e afronta a racionalidade do sistema regulatório nacional, sendo imprescindível uma atuação ativa para evitar o alargamento das consequências da norma.
Diante desse cenário, é essencial que as prestadoras de serviços de telecomunicações afetadas se mobilizem de forma coordenada para provocar o Poder Judiciário, buscando cessar eventuais sanções aplicadas, por meio de controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado, garantindo-se a higidez normativa e a segurança jurídica de que não tenham contra si aplicadas multas flagrantemente ilegais.
Lissa Thereza de Magalhães Souza Sena
Advogada e Consultora da Silva Vitor, Faria & Ribeiro | Sociedade de Advogados
[1] “Altera a Lei nº 13.478, de 30 de dezembro de 2002, que dispõe sobre a organização do Sistema de Limpeza Urbana do Município de São Paulo; a Lei nº 13.614, de 02 de julho de 2003, que estabelece as diretrizes para a utilização das vias públicas municipais; a Lei nº 14.803, de 26 de junho de 2008, que dispõe sobre o Plano Integrado de Gerenciamento dos Resíduos da Construção Civil e Resíduos Volumosos; a Lei nº 16.612, de 20 de fevereiro de 2017, que dispõe sobre o Programa de Combate a Pichações no Município de São Paulo; a Lei nº 16.673, de 13 de junho de 2017, que institui o Estatuto do Pedestre no Município de São Paulo; e a Lei nº 17.501, de 3 de novembro de 2020, que dispõe sobre a observância de normas técnicas para o uso do espaço público pelas concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica e demais empresas que compartilhem sua infraestrutura e sobre a retirada de fios inutilizados em vias públicas do Município de São Paulo, bem como dá outras providências.”
[2] https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-18299-de-19-de-setembro-de-2025/consolidado