Introdução:
O compartilhamento de postes entre distribuidoras de energia elétrica e empresas de telecomunicações é um tema crucial para a infraestrutura nacional. Desde 2018, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) estavam revisando a Resolução Conjunta 004/2014, com base na consulta pública 73/2018, para adequá-la às necessidades atuais do setor. Em 23.07.2024, a ANEEL decidiu extinguir esse processo de revisão devido ao impacto do Decreto Presidencial 12.068/24, uma decisão que representa um prejuízo tremendo para a evolução regulatória e a segurança jurídica do setor. Este artigo explora as implicações dessa decisão, os argumentos apresentados e a tensão política subjacente entre os setores envolvidos.
O Decreto Presidencial 12.068/24 e Suas Implicações:
O Decreto Presidencial 12.068/24, emitido pela Presidência da República, teve como um dos objetivos regulamentar a cessão de uso do postes para terceiro, um ponto crucial na disputa entre ANEEL e ANATEL perante o processo administrativo para edição do novo regulamento, processo nº 48500.003090/2018-13, em análise desde 2018.
A interpretação do decreto trouxe mais complexidade ao invés de resolver as questões jurídicas existentes. Segundo Sandoval Feitosa, diretor-geral da ANEEL, o decreto não esclareceu as dúvidas jurídicas levantadas pelas procuradorias especializadas. Além do mais, esse ponto sensível defendido pela ANEEL revela uma defesa das Cias. de Energia, que começaram a enxergar o compartilhamento dos postes como sendo uma fonte de receita considerável (a ser ainda mais explorada), mesmo, historicamente, não tomando medidas de fiscalização e organização das redes de telecomunicações.
Extinção do Processo de Revisão da Resolução Conjunta 004, Processo nº 48500.003090/2018-13:
Na 26ª reunião pública ordinária da diretoria da ANEEL, realizada no dia 23 de julho de 2024, às 9 horas, a diretoria da ANEEL decidiu, por unanimidade, e para surpresa de todos, especialmente, surpresa da ANATEL, extinguir o processo de revisão da Resolução Conjunta 004, em tramitação desde 2018.
Feitosa, Diretor da ANEEL, argumentou que o decreto não abordou adequadamente a questão da cessão do direito de exploração comercial dos pontos de fixação dos postes. Ele destacou que a proposta em discussão (cessão para um agente neutro denominado de “posteiro”) não era razoável, pois, permitia a cessão de exploração de ativos em áreas lucrativas, mas não em áreas deficitárias, criando um “limbo” operacional tremendo. Além disso, Feitosa argumentou que foi criada uma insegurança jurídica gigante devido a interferências em vários comando legais e em relações contratuais.
Feitosa também enfatizou que o decreto não pacificou a questão semântica que é alvo de divergência entre ANEEL e ANATEL. A principal disputa no processo de revisão é sobre a cessão dos postes versus a cessão do direito de exploração comercial dos pontos de fixação. Além disso, Feitosa defendeu que as novas regras deveriam se aplicar, se fosse o caso, apenas as novas concessões de distribuição elétrica, a partir da assinatura de novos contratos, por um período de 30 anos, não podendo o Decreto Presidencial impor tal poder dever sem observar tais questões cruciais.
Impacto da Decisão e Próximos Passos:
A decisão de extinguir o processo de revisão da Resolução Conjunta nº 004, para iniciar um novo processo do zero foi unânime entre os diretores da ANEEL. Fernando Mosna, que inicialmente apresentou um voto divergente, retirou sua oposição após o decreto presidencial ser editado, afirmando que novos fatos merecem uma nova análise técnica. A nova tramitação será direcionada para a adequação às regras estabelecidas pelo decreto governamental, e não pela atualização da Resolução Conjunta 004. Logo, a decisão tomada pela ANEEL fará com que o processo de regulamentação do compartilhamento dos postes, aguardada desde 2018, seja reiniciada com outro viés normativo.
Continuidade da Resolução Conjunta 004 e o Impacto nos Processos Judiciais:
A noticiada extinção do processo que previa a revisão da Resolução Conjunta nº 004/2014, na nossa ótica, não prejudicará os processos judiciais em curso, que debatem principalmente a aplicação de um preço justo e razoável a ser aplicado nos contratos de compartilhamento de pontos de fixação, pois, a mencionada Resolução Conjunta nº 004 continua em vigência.
A edição do Decreto Presidencial nº 12.068/24, mesmo tendo gerado a extinção do processo de revisão da Resolução Conjunta nº 004/14, na nossa ótica, poderá beneficiar as ações em curso.
Em grande parte, o Decreto Presidencial nº 12.068/24 regulamentou a licitação e a prorrogação das concessões de distribuição de energia elétrica. Além disso, o referido decreto ainda regulamentou a Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.427/1997). Nesse contexto, o Decreto afirma no seu art. 16, §2º, que o compartilhamento de postes “será objeto de exploração comercial por meio de oferta de referência de espaço de infraestrutura, conforme regulação conjunta da ANEEL e da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, quanto ao preço, ao uso da faixa, dentre outros.”
Ao afirmar que o compartilhamento será explorado com base na “oferta de referência conforme regulação conjunta (…), quanto ao preço”, podemos defender que já existe um conceito do que seria a denominada “oferta de referência”, que no caso concreto, já está previsto, no art. 1º, da Resolução Conjunta nº 004/14.
Alinhado a esse entendimento, é importante verificar que na sequência, perante o §3º, inc. I, do art. 16, o Decreto afirmou que “a cessionária estará sujeita à regulação conjunta da Aneel e da Anatel”.
Logo, com a edição do referido decreto, é possível concluir que o preço de referência passou a ser de observância ainda mais obrigatória pelas Concessionárias de Energia Elétrica.
Esse entendimento pode ser utilizado, então, para auxiliar os processos judiciais em curso e em novos processos judiciais que visam obter a aplicação de um preço de compartilhamento justo e razoável. E se o Decreto Presidencial consolidou ainda mais a obrigação de se observar uma “referência quanto ao preço” (que deve ser justo e razoável e não discriminatório, conforme o art. 73, LGT, Lei 9.472/97), que seja aplicado o próprio “preço de referência” previsto na Resolução nº 004, já editado pelas Agências de forma conjunta.
Além mais, já existem várias jurisprudências dos tribunais pátrios, inclusive, em tribunais superiores, antes mesmo da publicação do Decreto Presidencial, que já consideram obrigatória a observância do preço de referência previsto na Resolução 004/2014.
Posição da ANATEL e Impactos na Expansão da Conectividade:
Segundo informou sites especializados no setor de telecomunicações, no mesmo dia da reunião da ANEEL, a ANATEL expressou forte discordância com a decisão que encerrou o processo de revisão da norma de compartilhamento de postes. A ANATEL considerou a decisão um retrocesso, prejudicando a conectividade no Brasil, “já que postes são essenciais para a instalação de cabos de telecomunicações”. E segundo a Anatel, “o arquivamento mantém a desordem na infraestrutura e atrasa a solução do problema.” Isso além de gerar imensas reanálises e retrabalhos, eis que o referido processo já estava maduro em várias outras frentes diferentes da questão do posteiro.
Isso porque a revisão da norma de compartilhamento previa abordar vários temas e especificidades de enorme importância para o mercado nacional de compartilhamento entre empresas de telecomunicações e concessionárias de energia elétrica.
A ANATEL, então, de vários prismas, viu com muita preocupação a decisão de arquivamento do processo de revisão das normas de compartilhamento, tomada pela ANEEL em decisão unilateral. Ainda mais, após o seu alinhamento com política pública dos Ministérios das Comunicações e de Minas e Energia, com a Portaria Interministerial MCOM/MME nº 10.563/2023, e o Decreto Presidencial nº 12.068/2024.
Considerações da ANEEL e a Questão do “Posteiro”:
A ANEEL considera que o poste é um ativo vinculado ao serviço público de distribuição de energia elétrica, ativo que consta nos contratos de concessão/permissão das distribuidoras. A responsabilidade pela gestão desse ativo é da distribuidora, cabendo a ela decidir, nos termos dos contratos vigentes, qual o melhor modelo e quais riscos devem ser assumidos ou repassados a terceiros nessa gestão.
Assim, a nosso ver, a ANEEL não concorda com a proposta de existência de um “posteiro”, ao contrário da Anatel e demais agentes de mercado. Diante do decreto que permitiu a figura do posteiro, a ANEEL, através do voto proferido, mandou um recado claro de que não irá aceitar facilmente essa imposição de poderes e interferência criada por força do Decreto Presidencial. Além do mais, a Aneel fez questão de taxativamente constar no voto todas as particularidades sensíveis e inerentes a insegurança jurídica criada pelo Decreto conforme já informado acima.
Nesse ponto, entendemos que a Aneel possui fundamentos sólidos. Pois, de fato, é preocupante, de vários prismas, a criação de um posteiro (empresa que teria grande abrangência e poderio), que nascerá contendo grande ativo de infraestrutura, criada para gerir e solucionar o maior problema na última década de um mercado conjunto. Sem contar o nascimento do posteiro dentro de uma redoma de totais inconsistências jurídicas, ferimentos a direitos de terceiros e lesões aos contratos de concessão.
Além mais, é importante destacar que se as Cias de Energia locais, de forma pulverizada, não estão conseguindo gerir, fiscalizar e resolver o problema do compartilhamento. Com isso, a centralização em um novo agente, de porte gigantesco, ao nosso ver, não conseguirá melhorar o ecossistema em curto espaço de tempo ou de forma efetiva.
Mas, o arquivamento do processo de revisão diante da discordância em relação a um tema (posteiro), dentre um arcabouço de várias outras normas que serviriam para pacificar inúmeros debates inerentes ao compartilhamento, prejudicou imensamente toda a sociedade brasileira.
Conclusão:
A extinção do processo de revisão da Resolução Conjunta 004/2014 marca um ponto crítico na regulação do compartilhamento de postes no Brasil. A decisão da ANEEL, motivada pela complexidade jurídica introduzida pelo Decreto Presidencial 12.068/24 e pela tensão política entre os setores envolvidos, destaca a necessidade de uma nova abordagem regulatória. O reinício do processo busca alinhar as regras às diretrizes governamentais, mas coloca em debate a autonomia das agências reguladoras e prejudica a sociedade com a demora em obter outras soluções importantes de pacificação.
Noutra banda, a manutenção da Resolução Conjunta 004/2014, atualmente em vigor, assegura que os processos judiciais (que debatem preço de compartilhamento) em curso, não sejam prejudicados, proporcionando estabilidade regulatória enquanto novas diretrizes são estabelecidas. Além disso, a expressão “oferta de referência” prevista no decreto sustentará ainda mais a obrigatoriedade na aplicação do “preço de referência” já existente, fortalecendo posições em ações judiciais. Além de consolidar e fortalecer entendimentos jurisprudenciais no mesmo sentido.
Referências:
– Decreto Presidencial 12.068/24
– Resolução Conjunta 004 ANEEL-ANATEL
– Reunião da Diretoria da ANEEL, 23 de julho de 2024
– Voto Vista do Diretor-Geral Sandoval Feitosa da Agência Nacional de Energia Elétrica, 23/07/2024
– Declarações do Diretor Fernando Mosna
-https://www.convergenciadigital.com.br/Telecom/Decisao-da-Aneel-sobre-postes-e-pirraca%2C-retrocesso-e-uma-quebra-de-confianca-entre-agencias-66562.html
-https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-manifesta-discordancia-da-decisao-da-aneel-que-extinguiu-processo-de-compartilhamento-de-postes
Alan Silva Faria
Consultor e Advogado
Sócio Fundador da Silva Vitor, Faria & Ribeiro – Advogados Associados